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Metáforas da tradução

O que significa ser um bom tradutor?

Na abertura do VIII Congresso da Abrates, o brilhante professor Leandro Karnal nos brindou com belas metáforas sobre o que significa traduzir e ser um bom tradutor. Uma delas, a dos "cegos e o elefante", reflete o papel do tradutor como mediador de culturas. Já o conto humorístico "O tradutor cleptomaníaco", de Dezsö Kosztolányi, também mencionado por Karnal, brinca com a possibilidade de se ferir loucamente a ética da profissão com manobras impensáveis.

Vamos começar com a história dos cegos e do elefante. Certo dia, um príncipe mandou chamar um grupo de cegos em seu castelo, mandou trazer um elefante e o colocou diante do grupo. Em seguida, foi levando os cegos até o elefante para que o apalpassem. Um apalpava a barriga; outro, a cauda; outro, a tromba. Então, o que tinha apalpado a barriga disse que o elefante era como uma enorme parede. O que tinha apalpado a cauda discordou e replicou que o elefante se parecia mais com uma corda. Por fim, o que tinha apalpado a tromba interferiu: “Vocês estão por fora. O elefante é uma mangueira de água…”.

Enquanto os cegos se envolveram numa discussão sem fim, cada um querendo provar que os outros estavam errados de acordo com sua própria experiência, o tradutor é aquele que vê que o elefante é tudo o que foi dito. Transpondo a metáfora para o mundo da tradução, o elefante representa a polissemia das palavras. Uma palavra pode ter diferentes acepções na mesma cultura e entre culturas diferentes de acordo com o contexto. O tradutor é aquele que aceita e concilia essas diferentes visões de mundo em seu trabalho fazendo escolhas muitas vezes difíceis.

Ao contrário do que foi ilustrado acima, o tradutor cleptomaníaco do conto de Dezsö Kosztolányi não cumpre o primeiro mandamento da boa tradução: não roubarás (ou omitirás) palavras. Esse princípio está na base da ética da profissão. Com certeza, profissionais como você não sofrem desse mal, mas transcrevi o conto abaixo apenas para alegrar seu dia. ;-)

O TRADUTOR CLEPTOMANÍACO e outras histórias de Kornél Esti
Dezsö Kosztolányi
 

Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos, com que começamos a jornada, mas que depois se distanciaram e desapareceram. De quando em quando lançávamos um nome ao ar. Quem se lembra dele? Balançávamos a cabeça e um pálido sorriso se esboçava em nossos lábios. No espelho de nossos olhos surgia um rosto esquecido, uma carreira e uma vida perdidas. Quem sabe algo sobre ele? Viverá ainda? O silêncio respondia à pergunta. Neste silêncio, a coroa de flores de sua glória farfalhava, como farfalhavam as folhas no cemitério. Calávamo-nos.


Ficamos assim durante minutos, até que alguém evocou o nome de Gallus. — Pobre sujeito — disse Kornél Esti—, encontrei-o anos atrás, mas já faz sete ou oito anos, sob condições muito tristes. Foi quando lhe aconteceu algo relacionado com uma novela policial, algo que também havia sido uma história policial, a mais emocionante e mais dolorosa que já vivi. Porque vocês o conheciam, um pouco, ao menos. Era um garoto talentoso, eletrizante, intuitivo, consciencioso e culto também. Falava várias línguas. Sabia inglês tão bem que dizem que o príncipe de Gales tomara aulas particulares com ele. Havia morado quatro anos em Cambridge.


Mas tinha um defeito fatal. Não, não bebia. Mas surrupiava tudo que estava ao alcance de sua mão. Roubava como uma ave de rapina. Tanto lhe fazia se se tratava de um relógio de bolso, chinelos ou um enorme duto para chaminé. E não se preocupava também com o valor dos artigos roubados, nem com o seu volume e dimensões. Geralmente não se importava com a sua utilidade. Seu prazer consistia simplesmente em fazer aquilo que queria: roubar. Nós, os seus amigos mais próximos, nos esforçávamos para trazê-lo à razão. Falávamos à sua alma, carinhosamente. Repreendíamos e ameaçávamos. Ele concordava conosco. Prometia sempre lutar contra sua natureza. Mas a razão não vencia, sua natureza era mais forte. Sempre recaía.

 

Quantas vezes desconhecidos não o repreenderam, e não o humilharam em lugares públicos, quantas vezes não o flagraram, e, nessas ocasiões, tínhamos de tomar atitudes inacreditáveis para minimizar as conseqüências de seus atos. Certa vez, porém, no expresso para Viena, foi surpreendido por um comerciante morávio ao aliviá-lo de sua carteira, e entregue à polícia na estação mais próxima. Trouxeram-no algemado para Budapeste.


Tentamos salvá-lo de novo. Vocês, que escrevem, sabem que tudo é decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem. Tentamos provar que ele era um cleptomaníaco e não um ladrão. Aquele que conhecemos geralmente é cleptomaníaco. Aquele que não conhecemos geralmente é ladrão. O tribunal não o conhecia; assim foi qualificado — ladrão, e condenado a dois anos de prisão.


Depois de libertado, numa sombria manhã de dezembro, próximo ao Natal, apareceu-me, esfomeado, esfarrapado. Jogou-se a meus pés. Implorou que eu não o abandonasse, que o ajudasse, que lhe arrumasse trabalho. Escrever sob seu próprio nome estava fora de qualquer cogitação. Nada sabia fazer, porém, senão escrever. Procurei então um editor honesto e humano, recomendei-o, e no dia seguinte o editor incumbiu-o da tradução de uma novela inglesa de detetives. Era um daqueles lixos com os quais nós não queremos sujar as mãos. Não o lemos. No máximo o traduzimos, usando luvas. Seu título — até hoje me lembro —, “O misterioso castelo do conde Vitsislav”. Mas que importava? Fiquei feliz por ajudá-lo, ele feliz por poder comer e assim começou o trabalho. Trabalhou com tanto afinco que em duas semanas — muito antes do prazo — entregou o manuscrito.


Fiquei extremamente surpreso quando, passados alguns dias, o editor me comunicou que a tradução do meu protegido era totalmente inutilizável, e por isso não estava disposto a pagar nenhum vintém. Não entendi bem. Fui até lá de táxi.


O editor, sem nada dizer, entregou-me o manuscrito. Nosso amigo o datilografara com capricho, numerara as páginas, até as prendera com uma fita com as cores nacionais. Isso era muito dele, pois — acho que já disse —, em questões de literatura, era preciso e escrupulosamente meticuloso. Comecei a ler o texto. Soltei um grito de admiração. Frases claras, mudanças engenhosas, montagens lingüísticas espirituosas se sucediam, muito mais digna que o original. Espantado, perguntei ao editor que defeito tinha encontrado. Ele me entregou original inglês, de forma tão silenciosa quanto fez com o manuscrito, e pediu-me para comparar os dois textos. Por meia hora, mergulhei alternadamente no original e no manuscrito. Ao final, levantei-me consternado. Declarei que ele estava com toda a razão.


Por quê? Nem tentem adivinhar. Estão enganados. Não tentou contrabandear o texto de um outro original. Era realmente “O misterioso castelo do conde Vitsislav”, numa tradução fluente, artistíca, e por vezes poética. Estão novamente enganados. O texto não continha nenhum escorregão. Afinal, ele sabia inglês e húngaro perfeitamente. Parem de tentar. Disso vocês nunca ouviram falar. A mancada foi outra. Totalmente outra.


Eu também descobri aos poucos, gradualmente. Prestem atenção. A primeira frase do original inglês dizia assim: “As trinta e seis janelas do velho castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, na salão de baile, quatro lustres de cristal iluminavam luxuosamente. Na tradução húngara estava: “As dezessete janelas do castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, dois lustres de cristal iluminavam luxuosamente". Arregalei meus olhos e continuei a leitura. Na terceira página, o escritor inglês dizia: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, mil e quinhentas libras...” Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor húngaro: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira e atirou a quantia pedida, cento e cinqüenta libras...”


Tive uma péssima premonição, que infelizmente se tornou uma certeza nos minutos seguintes. Mais abaixo, no fim da terceira página, li na edição inglesa: “A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite, usando as velhas jóias da família: tiara de diamantes, herdada da sua tataravó, esposa de um príncipe alemão;sobre seu colo de cisne, pérolas verdadeiras de brilho opaco; seus dedos quase se enrijeciam com os anéis de brilhante, safira, esmeralda.


O manuscrito húngaro, para minha grande surpresa, assim trazia: “ A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite...” Sem mais. A tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de brilhante, safira e esmeralda haviam desaparecido. Compreendem o que fizera esse infeliz escritor, merecedor de um futuro melhor? Simplesmente roubou as jóias de família da condessa Eleonora, e, com a mesma imperdoável leviandade, roubou até o simpático conde Vitsislav, deixando das suas mil e quinhentas libras apenas cento e cinqüenta, e da mesma forma surrupiou dois dos quatro lustres de cristal, e desviou vinte e quatro das trinta e seis janelas do velho castelo desgastado pelo vento. Tudo começou a girar ao meu redor. Minha surpresa só aumentou quando constatei, sem nenhuma dúvida, que essa determinação percorria todo o seu trabalho. Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre causava prejuízo aos personagens, mesmo que só se apresentassem naquele capítulo, e, sem respeitar móvel ou imóvel, atropelava a quase indiscutível sacralidade da propriedade privada. Trabalhava de várias maneiras. Na maioria das vezes, os objetos desapareciam sem mais nem menos. Aqueles cofres, talheres de prata, cuja missão era enobrecer o original inglês, não os encontrei em nenhum lugar no manuscrito húngaro. Em outros casos só tirava uma parte, a metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado levar cinco malas para a cabine do trem, ele só mencionava duas; sobre as outras três silenciava sorrateiramente. De todos os casos, para mim, o pior — porque isso decididamente mostrava má intenção e falta de hombridade — era que com frequência trocava as pedras e metais preciosos por outros sem nobreza e sem valor: a platina por lata, o ouro por latão, o diamante por zircotina ou vidro.


Despedi-me do editor, cabisbaixo. Por curiosidade, pedi emprestado o manuscrito e o original inglês. Como estava intrigado pelo verdadeiro enigma dessa novela policial, continuei em casa minha investigação, e fiz um balanço completo dos artigos roubados. Trabalhei sem parar da uma e meia da tarde até seis e meia da manhã. Descobri, finalmente, que nosso desvirtuoso colega escritor apropriou do original inglês, durante a tradução, ilegal e indecentemente, 1.579.251 libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérola, 181 relógios de bolso, 309 brincos, 435 malas, sem falar das propriedades, florestas e pastos, castelos de príncipes e barões, e outros objetos menores, lenços, palitos de dente, campainhas, cuja listagem seria muito comprida e talvez inútil. Onde colocou todos esses móveis e imóveis que afinal só existiam no papel, no reino da imaginação; qual era a razão do seu furto; a investigação iria muito longe e assim melhor nem especular. Mas tudo isso me convenceu de que ele ainda era escravo de seu vício criminoso, ou da doença, e não existia nenhuma esperança de cura, e não merecia ser amparado pela sociedade honesta. Retirei minha proteção devido à minha indignação moral. Entreguei-o ao destino. Depois, nunca mais ouvi falar dele.

 

PS: esta publicação foi compartilhada pelo blog da Portuguese Language Division of The American Translators Association.